DESVIO DE FUNÇÃO: O QUE É, COMO PROVAR E QUAIS SÃO OS DIREITOS DO TRABALHADOR
- O que é desvio de função?
- O que diz a legislação trabalhista?
- Como provar o desvio de função?
- Desvio de função X Acúmulo de função.
- Quais são os direitos de quem sofre desvio de função?
- Conclusão
O desvio de função é uma realidade comum nas relações de trabalho, embora muitos trabalhadores ainda não saibam reconhecê-lo corretamente.
Você foi contratado para exercer uma função, mas na prática executa atividades totalmente diferentes daquelas previstas no seu contrato?
Isso pode caracterizar o chamado desvio de função, uma situação infelizmente comum especialmente em setores como a saúde e a educação.
Neste artigo, vamos explicar o que é o desvio de função, quais os direitos de quem passa por isso, como fazer prova e quando é possível entrar com ação judicial.
O que é desvio de função?
O desvio de função acontece quando o trabalhador é contratado para exercer um cargo ou função específica, mas, na prática, executa tarefas de outro cargo, com maior complexidade, responsabilidade ou exigência técnica, sem receber a devida contraprestação por isso.
Essa situação é comum, por exemplo:
- Quando um auxiliar administrativo passa a exercer atividades de analista ou de gestão;
- Quando um técnico de enfermagem assume responsabilidades de enfermeiro, sem o respectivo cargo e salário;
- Quando um empregado público é designado verbalmente para atividades de outro setor ou função, mas continua com o mesmo salário e sem reconhecimento formal.
Importante: substituições temporárias, como cobrir férias de um colega ou participar de um projeto pontual, não caracteriza desvio de função, mas ainda assim podem gerar o direito ao pagamento da função exercida, conforme determina a CLT.
Agora que já compreendemos o que caracteriza o desvio de função, é fundamental entender o que a legislação trabalhista prevê sobre esse tipo de situação.
2. O que diz a legislação trabalhista?
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não prevê expressamente o desvio de função, mas o tema é amplamente reconhecido pela jurisprudência trabalhista.
A proteção ao trabalhador nesses casos se fundamenta em princípios essenciais do Direito do Trabalho, como a boa-fé contratual, a valorização da dignidade da pessoa humana, a função social do trabalho e a vedação ao enriquecimento sem causa por parte do empregador.
A principal norma aplicável é o artigo 468 da CLT, que dispõe que qualquer alteração nas condições do contrato de trabalho só é válida se ocorrer por mútuo consentimento e, ainda assim, desde que não acarrete prejuízos ao empregado. Caso contrário, a mudança será considerada nula de pleno direito.
Esse dispositivo garante segurança jurídica ao trabalhador, impedindo que o empregador modifique unilateralmente as funções do empregado, impondo-lhe novas atribuições sem a devida contrapartida salarial ou reconhecimento formal.
No âmbito da jurisprudência, a Orientação Jurisprudencial nº 125 da SDI-1 do Tribunal Superior do Trabalho (TST) estabelece que o simples desvio funcional não garante a reclassificação do empregado em novo cargo, mas assegura o pagamento das diferenças salariais correspondentes à função efetivamente exercida.
Portanto, ainda que o desvio de função não esteja expressamente previsto na legislação, trata-se de uma prática ilícita que fere os princípios que regem a relação de trabalho e gera consequências jurídicas, inclusive o direito ao pagamento das diferenças salariais e, em alguns casos, indenização por danos morais, quando comprovado o abuso ou a má-fé do empregador.
Antes de buscar qualquer reparação, é importante reconhecer quando, de fato, há um desvio de função. Para isso, precisamos entender quais elementos caracterizam essa irregularidade no ambiente de trabalho e como provar.
3. Como provar o desvio de função?
Para que o desvio de função seja reconhecido juridicamente, não basta que o trabalhador esteja realizando uma tarefa diferente da inicialmente contratada. É preciso que alguns elementos estejam presentes de forma clara e consistente:
✔️ Falta de regularização contratual
A alteração nas atividades não é formalizada por meio de aditivo contratual ou registrada na Carteira de Trabalho. Essa omissão impede que o trabalhador tenha seus novos direitos reconhecidos de forma oficial.
✔️ Desempenho contínuo das novas funções
Não se trata de uma ajuda pontual ou eventual. O trabalhador passa a executar rotineiramente atividades que fogem àquelas para as quais foi contratado, mantendo essa nova rotina por um período considerável.
✔️ Mudança relevante nas atribuições
As novas tarefas assumidas envolvem outro grau de complexidade, exigem conhecimentos técnicos diferentes ou atribuem maior responsabilidade. Ou seja, não são apenas variações dentro da mesma função, mas sim atividades próprias de outro cargo ou função.
✔️ Falta de ajuste salarial
Mesmo com o aumento das responsabilidades ou da complexidade das tarefas, não há qualquer reconhecimento financeiro. O trabalhador continua recebendo o salário anterior, o que configura um prejuízo direto e injusto.
Esses elementos, quando combinados, configuram o desvio de função e podem dar ao trabalhador o direito de pleitear judicialmente a diferença salarial acumulada durante o período em que exerceu funções além daquelas originalmente contratadas.
A prova do desvio de função é essencial para garantir os direitos do trabalhador. É possível demonstrar por meio de:
- Testemunhas que confirmem as atividades exercidas;
- Documentos, como e-mails, ordens de serviço, relatórios, comunicações internas e metas;
- Análise comparativa entre as atividades contratadas e as efetivamente executadas;
- Quadro de cargos e salários da empresa ou órgão público, demonstrando a diferença de funções e vencimentos.
Agora que entendemos como identificar e comprovar o desvio de função, é importante esclarecer um ponto que gera bastante confusão entre os trabalhadores: qual é a diferença entre desvio de função e acúmulo de função? Embora ambos envolvam o exercício de atividades além daquelas previstas em contrato, tratam-se de situações distintas, com consequências jurídicas diferentes. Vamos entender melhor.
4. Desvio de função X Acúmulo de função.
Muitos trabalhadores enfrentam mudanças em suas atribuições sem que haja uma compensação adequada, mas nem sempre sabem se estão diante de um desvio ou de um acúmulo de função. Apesar de parecerem semelhantes, essas duas situações possuem características próprias e implicações jurídicas diferentes.
Para facilitar a compreensão, veja a seguir uma tabela que destaca as principais diferenças entre acúmulo e desvio de função:
Agora que você já sabe como o desvio de função é caracterizado na prática e como provar, é importante entender quais são os direitos do trabalhador que passa por essa situação.
5. Quais são os direitos de quem sofre desvio de função?
O trabalhador que consegue comprovar judicialmente que sofreu desvio de função tem direito à reparação dos prejuízos causados por essa prática irregular. Entre os principais direitos reconhecidos pela Justiça do Trabalho, destacam-se:
💰 Diferença salarial retroativa
Sobre os últimos 5 anos, com base no cargo realmente exercido.
O empregado pode pleitear o pagamento das diferenças entre o salário da função contratada e aquele correspondente à função de fato exercida. Essas diferenças devem ser pagas retroativamente ao período em que o desvio ocorreu.
🧾 Reflexo nas demais verbas
As diferenças salariais impactam diretamente outros direitos trabalhistas, gerando reflexos em:
Férias + 1/3, 13º, FGTS, INSS, horas extras, rescisão e outras.
⚖️ Indenização por danos morais
Se o desvio trouxer sobrecarga, constrangimento ou impacto emocional.
Quando o desvio de função vier acompanhado de condutas abusivas, humilhação, assédio ou ofensa à dignidade do trabalhador, é possível pleitear indenização por danos morais. Esse tipo de indenização depende da comprovação do abalo emocional ou da violação dos direitos de personalidade.
Importante: a Justiça do Trabalho não determina a mudança de cargo ou efetivação automática, mas sim a compensação financeira pelos prejuízos sofridos.
Uma pergunta que sempre recebemos é: Posso entrar com uma ação mesmo ainda trabalhando?
Sim. Muitos trabalhadores têm receio de buscar seus direitos com medo de retaliação. Mas é plenamente possível ajuizar ação judicial mesmo durante o contrato de trabalho.
O ideal é buscar orientação jurídica especializada para analisar o caso concreto, organizar as provas e adotar a estratégia mais adequada. Cada situação exige um olhar técnico e cuidadoso, especialmente no setor público, onde há regras específicas de acesso a cargos.
Atenção: o prazo para reclamar é limitado!
O trabalhador que sofre desvio de função tem até 2 anos após o fim do contrato de trabalho para entrar com a ação. Além disso, poderá recuperar os valores dos últimos 5 anos de desvio, contados a partir do ajuizamento da ação.
Ou seja, quanto mais tempo você demorar para buscar seus direitos, maior o prejuízo financeiro.
Conclusão
O desvio de função é uma prática recorrente nas relações de trabalho e, embora não esteja expressamente tipificado na CLT, é considerado ilegal e passível de reparação quando gera prejuízos ao trabalhador.
Ao assumir responsabilidades diferentes daquelas previstas no contrato, sem a devida compensação salarial ou formalização, o empregado tem o direito de buscar a recomposição financeira das perdas e o reconhecimento do trabalho efetivamente prestado.
Se você identifica essa situação no seu dia a dia profissional, é fundamental procurar orientação jurídica especializada. Assim, é possível avaliar seu caso com clareza, reunir provas e garantir que seus direitos sejam respeitados.
Mylena Vitório Bransin é advogada e controller jurídico, especialista em Direito e Relações do Trabalho. Atua como professora no Quetes Educacional. É coordenadora da Controladoria Jurídica no Quetes Advocacia e líder da área trabalhista do escritório. Integra a Comissão das Mulheres Advogadas e a Comissão de Gestão e Empreendedorismo.